sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Presente de natal para a memória histórica brasileira




A condenação do Estado brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) na Organização dos Estados Americanos (OEA) – como responsável pelo “desaparecimento forçado” de 62 pessoas entre 1972-1974 durante a Guerrilha do Araguaia nos anos de chumbo da ditadura militar – é uma vitória dos que lutam pelos Direitos Humanos no país e pela real consolidação democrática brasileira.

É um merecido e esperado tapa na cara da arrogância dos militares e do Judiciário do Brasil que, entretanto, insistem em manter, ridicula mas preocupantemente, o narizinho empinado diante da retumbante derrota.

Essa condenação se anunciava desde maio deste ano, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) se negou a rever a Lei de Anisitia (6.683/79) e considerou incluídos na Lei todos os que cometeram “crimes políticos ou conexos” durante a ditadura, inclusive os de tortura. O caso que tramitava na OEA era a principal esperança de que, internacionalmente, o Brasil acabasse em posição difícil em matéria de Direitos Humanos.


UM CONSTRANGIMENTO NECESSÁRIO para revelar que o país que joga ás vezes de potência regional, tentando sentar-se como potência global, buscando inclusive atuar como mediador de conflitos e força estabilizadora, não é capaz de lidar com o seu próprio recente e vergonhoso passado, principalmente depois de ter recebido aval da sua maior instância judicial para tolerar a prática de tortura.

Por isso a condenação do governo brasileiro com base na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica) é uma vitória paradoxal pois é péssimo para a imagem do Brasil em nível internacional. Revela um país não respeitador dos direitos e que em função disso pode inclusive sofrer conseqüências penais e econômicas decorrentes da decisão do Supremo. Nossa principal Corte de Justiça toma uma decisão dentro de sua autonomia, mas sem compatibilizar com os tratados e as convenções internacionais das quais o Brasil é signatário, sobretudo o Pacto de San Jose da Costa Rica.

Tal situação reforça a conhecida e deprimente fragilidade do Direito Internacional e revela a arrebatadora, quase repugnante, contradição em que o nosso Judiciário se embrenhou. O presidente do STF, ministro Cezar Peluso, afirmou que a sentença da OEA “não revoga, não anula, nem cassa a decisão do Supremo”, já que “sua eficácia é apenas no campo da convencionalidade”.

Isto é, com toda a cara dura que deus lhe deu, o presidente do nosso Supremo Tribunal explicita que, quando a coisa aperta, o que vale mesmo é a realpolitik, danem-se os tratados internacionais! Deve ser bonito assinar convenções e tratados internacionais, e aparecer na lista da ONU como um Estado de valores democráticos e comprometidos com os Direitos Humanos, mas quando a porca torce o rabo, ela grita! Afinal, tratados internacionais são apenas convencionalidades…

E no rebolar para tentar legitimar uma tese, vale até dedo no olho, ou apelar para o patriotismo. Outro ministro do STF, Ricardo Lewandowski, sentenciou que decisão da OEA “não obriga o Supremo a recuar”, porque “prevalece a decisão do STF como órgão supremo do Judiciário e parte da soberania do país”.

A TESE DEFENDIDA PELA OAB junto ao Supremo Tribunal Federal – na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 153 – sustenta que a Lei da Anistia não se aplicaria aos torturadores, pois os crimes de tortura não seriam “crimes políticos e conexos”, mas sim crimes comuns. A Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA concorda e sentenciou que as disposições da Lei de Anistia que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana.

Mas nosso Supremo Tribunal age como a criança dona da bola: jogo onde quiser, se não levo a pelota embora. Ou, em outras palavras, a principal Corte de Justiça do continente diz que o Brasil está errado, mas nossos ministros dizem que nas questões da transição política dos anos 80 ninguém mais pode se meter; é competência “soberana” dos juízes brasileiros.

A Lei da Anistia sempre foi entendida como um tema determinante para a consolidação do regime democrático, mas as vontades políticas de escamotear o passado para garantir a velhice confortável e obscura de militares que atuaram criminalmente, mesmo que ao preço de tolerância para com a tortura impetrada por agentes do Estado, se mantêm firmes e agem para assegurar que as tiranias permaneçam sob o tapete.

E é assim que o Brasil segue reforçando seus estereótipos de pais do oba-oba, de sol e festa, onde tudo pode, onde para tudo se tem um jeitinho, onde as instituições não são sérias, onde é fácil cometer barbaridades e sair ileso, o paraíso, tropical, da impunidade.

Logo, o ministro de Defesa, Nelson Jobim, reforça-se como um dos maiores mistérios do governo petista. Quais serão as manobras e interesses das forças partidárias, e/ou “ocultas” do poder no nosso país para que se mantenha esse senhor no Primeiro Escalão governamental?

Jobim, com sua subserviência os Estados Unidos agora desmascarda pelo Wikileaks, foi um dos primeiros a gritar contra o Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) no ano passado e segue investindo seu expediente em proteger torturadores do regime militar se opondo ferrenhamente a qualquer iniciativa em favor da memória e da verdade.

PARA ESSA VOZ PRO-IMPUNIDADE QUE É, ABSURDAMENTE, O NOSSO MINISTRO DE DEFESA – mais uma vez – a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos de condenar o Brasil é “meramente política”. Jobim acredita que a sentenca da OEA não tem efeitos jurídicos no Brasil e afirma que não há possibilidade de punição para os militares que praticaram tortura no país.

Contudo, a decisão da OEA é um marco histórico porque pode se firmar como determinante na questão do respeito aos Direitos Humanos no Brasil. O país não tem o direito de seguir se omitindo – e fugindo – da busca da verdade sobre os reais acontecimentos durante a ditadura militar.

O Poder Executivo e a sociedade civil têm agora um estimulo internacional e não podem esmorecer. No Ministério da Justiça funcionam as comissões da Anistia e a de Mortos e Desaparecidos Políticos. E, por mais perseguição que tenha sofrido, segue em discussão a criação da Comissão da Verdade do Brasil para finalmente estabelecer um divisor de águas na história do país.

Segundo o sociólogo Gilson Caroni Filho “o entulho autoritário, no Brasil, apenas cresceu durante a longa noite dos generais”. A revisão da Lei da Anistia, o enfrentamento do vergonhoso passado brasileiro é uma questão para além das diferenças ideológicas: é uma necessidade cultural. Os torturadores devem se sentar no banco dos réus para evitar que novos crimes dessa natureza voltem a ser cometidos: a inviolabilidade dos Direitos Humanos no Brasil deve ser um pilar do projeto de nação de um Estado que finalmente começa a deixar de ser o país do futuro para construir o presente.

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